Existencialismo & DFW: dois caminhos para construir sua autoestima
I've found time can heal most anything
And you just might find who you're supposed to be
Oi, mundo!
Foi quase um ano de silêncio, os últimos meses porque eu estava concentrando toda minha energia criativa à dissertação de mestrado, mas a princípio por eu ter vivido experiências que achei essencialmente incomunicáveis. Não consigo e não vou tentar falar sobre a morte da Mell, minha tentativa de suicídio, o divórcio depois de quase uma década de relacionamento, exceto por isso aqui: em meio a tantos lutos simultâneos, o único que parecia reversível era o de mim mesma. Recebi o pedido de divórcio com gratidão, porque senti que, longe das expectativas do outro, tinha uma nova chance de me reencontrar. Eu poderia quebrar meu recorde de 1878 palavras numa newsletter elencando os motivos que me levaram a tentar tirar minha própria vida, mas dá pra resumir num clichêzinho: eu me perdi. Numa tentativa de ser quem gostariam que eu fosse, eu virei uma casca de mim mesma de quem ninguém poderia gostar, nem (e especialmente) eu mesma. Lembro do meu ex falar, depois de nos encontrarmos para assinar o divórcio, que foi como reencontrar uma pessoa de quem ele gostava e que não via há muito tempo. Também me sinto assim.
Então os últimos meses têm sido um longo processo de me reconectar comigo. Em certo sentido, tenho buscado assumir meus defeitos e reivindicar meu direito de ser humana e inevitavelmente imperfeita. Mas, mais profundamente, tenho tentado ser mais quem e como eu quero ser. Isso porque eu acredito que somos fundamentalmente o que colocamos no mundo. A tese do comporeamento, segundo a qual somos corpos e, mais do que isso, corpos-no-mundo, é subentendida em toda a filosofia de Merleau-Ponty, objeto de estudo da minha dissertação. O que Merleau-Ponty diz sobre a linguagem é que ela dá corpo e vida aos nossos pensamentos, que não existem antes do exercício da fala. Desse modo, não há uma interioridade ou uma anterioridade do pensamento: é através da expressão que o pensamento se realiza. Na minha leitura, se não há um pensamento anterior à fala, tampouco há uma "personalidade". É na experiência vivida com o mundo e com outros corpos que construímos quem somos.
Isso tem duas consequências (que talvez sejam só dois lados de uma mesma moeda): a primeira é uma responsabilidade absoluta sobre quem somos, afinal, somos nós quem escolhemos o que manifestamos, inclusive nossa personalidade. No entanto, essa responsabilidade é só o preço que pagamos por uma liberdade também absoluta, o que nos remete ao Sartre. Sartre diz que i. a existência precede a essência e ii. o ser humano está condenado a ser livre. A primeira dessas ideias significa que, assim como para Merleau-Ponty, é existindo que o homem define quem é. Como não há um criador maior que atribua um propósito às nossas vidas, cabe a nós construir tanto quem somos quanto o sentido da nossa existência. Já a segunda proposição de Sartre trata justamente da liberdade que vem dessa primeira ideia. Se somos nós mesmos que escolhemos quem somos, o nosso propósito e até mesmo o significado das nossas emoções e dos fatos, nossa liberdade é radical: cada dia que vivemos é uma reafirmação das nossas escolhas e mesmo não escolher é, no fim, uma escolha. Não tem como contornar essa liberdade e atribuir para algo fora de si a responsabilidade por o que se faz e quem se é – e a tentativa disso é o que Sartre chama de má-fé.
Agora, com esse brevíssimo panorama filosófico que com certeza simplifica muito conceitos extremamente complexos, posso ao menos tentar esclarecer a ideia por trás de uma resposta que dei no Instagram sobre autoestima e que resultou em muitos pedidos por esta newsletter. Porque é na existência, na relação com o mundo e com outros corpos e nos atos de expressão que a nossa essência e as nossas ideias são construídas, reafirmo que a gente é simplesmente o que coloca no mundo. Sendo assim, cabe a nós e somente a nós escolhermos quem somos. A responsabilidade e a liberdade que vêm disso podem ser assustadoras, mas são também alavancas para a construção de um Eu que nos permita uma boa autoestima. Seja mais como você gostaria de ser e, nesse processo, você vai acabar gostando de quem é.
***
Bom, mas você pode não concordar com o existencialismo. Talvez você seja meio determinista, ou acredite em Deus, ou acredite na separação cartesiana entre corpo e alma, ou talvez eu só tenha explicado super mal. Ofereço a você, então, um ponto de vista completamente diferente, mas que resulta numa conclusão parecida. Em Good Old Neon, meu conto favorito do livro Oblivion, do David Foster Wallace, somos apresentados a um narrador com uma terrível síndrome de impostor. Não vou entrar em detalhes da história (que você pode achar rapidinho no Google, mas eu não estou conseguindo linkar aqui), mas a conclusão é que há uma diferença enorme entre todo o universo que uma pessoa é e os pequenos vislumbres disso que os outros podem ter olhando através de um buraco de fechadura (que seria a linguagem). E – quem diz é o David Foster Wallace, não eu – é claro que, por causa disso, o que as outras pessoas veem nunca é o que a gente é, e é claro que, sabendo que só vão conhecer uma parte de nós, nós manipulamos o que essa parte transmite. Isso – de novo, é o David Foster Wallace falando, não eu – é exercer o livre-arbítrio.
Ora, se temos, de um lado, a limitação de nunca poder nos oferecer por inteiro ao olhar do outro e, em contrapartida, a liberdade de ativamente construir a parte de nós que o mundo vai conhecer, façamos o melhor possível dessa condição. Se você prefere acreditar que somos mais do que colocamos no mundo, vamos ao menos escolher apresentar a ele a melhor versão possível de nós. Uma digna, acima de tudo, da nossa própria admiração.
Com amor,
Tayná